Thursday, November 24, 2005

UM DIA NA “TIGRAGEM”

Sempre me divirto com discursos socialóides sobre como o povo injustiçado pobre coitado ignorante é explorado pelos detentores do poder e do dinheiro!

Ha! Sempre penso que com certeza isso sai da boca de quem nunca teve contato com esses pobres coitados. Levar presentinhos em orfanatos, queridas, não é ter contato com essas pessoas!

Cada dia que passo na triagem, seja do HC, seja da Vítor (carinhosamente apelidada de “tigragem”) penso o quanto sou explorada pelos pobres detentores da ignorância!

Hoje o dia começou assim...
01:00 AM: “Ai dotora, minhas costas doem, sinto a barriga ficar dura de hora em hora e duas pessoas na minha US perderam o nenê sentindo essas coisas!” Detalhe que deve ser lembrado, essa era a terceira gravidez dessa senhora. “Filha, esses são sintomas comuns na gestação, isso significa que TODAS as grávidas vão sentir isso. No seu posto não tem outras grávidas?” “Tem.” “Humm, pois é então converse com elas, OK?”

02:30 AM: “Eu to grávida e eu tive um sangramento.” “Quantas semanas de gestação?” “18.” “Todo sangramento em início de gestação é uma ameaça de aborto, como sua gestação ta bem no começo, é difícil ouvir o coração do bebê na máquina, precisamos de uma ecografia.” “Não quero fazer ecografia.” Mas é o único jeito de saber, vc pode estar correndo risco. Vc fuma?” “ Dotôra eu sou usuária de crack, e perdi um filho há uns dois anos. Eu tava no Evangélico mas não fui atendida e lá meu sangramento parou e eu falei pro meu pai me trazer aqui.” “Então vc não está mais sangando?” “Não” “ Vou chamar o residente pra fazer um exame ginecológico e dar uma olhadinha pra confirmar.” “Tem sangue aqui, mas não está sangrando agora, só com a ecografia vamos saber se o bebê está bem” “Não quero fazer ecografia” Vc pode estar correndo um risco de vida e seu bebê também” “Não quero fazer” “Escreve no prontuário que a paciente se recusou a fazer o exame e dê orientações” “BAM” A paciente bate a porta de um hospital às 3 da manhã. “Querida, se vc piorar volte, vc pode estar correndo risco, quero que vc me prometa que vai voltar, OK?”

Vários atendimentos depois...

10:00 AM: “Dotôra, eu sinto uma dor nas costas e minha barriga fica dura de hora em hora, mas não sinto dor na barriga.” “Quantas vezes vc ficou grávida?” “cinco com essa” “quantos filhos de parto normal?” “Quatro” “Vamos fazer um exame de toque para ver se esse neném vai vir ou não. Humm, dois centímetros. Querida vc não está tendo contrações que vão empurrar seu neném, a qualquer momento vc pode entrar em trabalho de parto, mas isso não será agora, pode ir pra casa” “ Quer dizer que não vou ficar, não vou ter meu filho?” “Isso mesmo, ainda é muito cedo, ele está só se preparando para nascer, mas não vai ser agora, pode voltar pra casa” “Ta legal dotôra, brigada” TOC TOC clicliclic TOC TOC. “Sim” “Como assim ela não vai ficar?” “Olha a senhora não pode tentar entrar aqui, tem pacientes sendo examinadas.” “ Mas como assim, ela vai ter esse filho” “minha senhora ela não vai ter esse filho agora, o colo não está dilatado e ela não está tendo contrações” “COMO NÃO?????? Por que vcs não fazem uma cesárea?” “No exame não mostra nada que ela vai ter esse bebê agora, minha senhora, não podemos internar a paciente sem ela estar em trabalho de parto, são regras do hospital, OK?”

12:00 PM: “O que aconteceu com a senhora?” “Minha bolsa estorou.” “De quantas semanas vc está?” “36” “Que hora pra esse neném vir hein? Ta meio adiantadinho, né?” “Pois é.” “Querida, quantas vezes vc ficou grávida?” “cinco” “quantos partos normais?” “quatro” “teve algum problema em algum parto?” “O último era prematuro.” “Vamos examinar então?...Que cor era mesmo o líquido que vc perdeu?” “verde” “CHAMA O RESIDENTE ELA VAI INTERNAR CESÁREA DE EMERGÊNCIA!!”

Bom, essa é a história da Vanderléia e como o bebê dela quase morreu por conta de uma noite pessimamente dormida e inúmeras dores nas costas. Graças a sabe Deus o que, parece que o neném passa bem.

A Vanderléia quase perdeu seu filho por causa desses pobres coitados explorados e ignorantes, que tem que enfrentar horas de filas no SUS pq os ricos malvados não pagam melhores salários e eles não podem ter planos de saúde...

A minha grande pergunta é: faria diferença? A questão não é o serviço, mas como ele é usado, qq plano de saúde por melhor que fosse não ia conseguir atender seus pacientes. O problema não é o sistema, são os usuários, se as pessoas procurassem o Hospital de Clínicas de maneira sensata, não teria essa palhaçada de código de transação, nem teria velhinhos sem perna na fila da consulta as sete da noite do dia anterior. Nem teria médicos mal-humorados, nem mal atendimento.

Mas lá dentro a coisa é outra, talvez nossos amigos socialóides não saibam, mas nosso dinheiro, nosso querido imposto de renda,CPMF e o diacho a quatro, que deveria ir para a educação, saúde e comida, vai para pagar reversão de laqueadura em uma mulher que já teve 3 filhos, mas esse marido novo não tem nenhum filho, sabe, e agora ela, que não trabalha e tem uma renda familiar de 100 pila, quer outro. E quem vai sustentar esse filho, são meus 30% de imposto. E é incrível como os maridos novos NUNCA têm filhos. Mas a gente faz nosso serviço e no fim do dia deseja...“Puxa querida, boa sorte na cirurgia, agora quem sabe só no pré-natal, né?”

Vai se fuder, sinto muito para os seres humanos perfeitos que não julgam, eu julgo sim e isso não faz de mim, uma pessoa má, sem compaixão. É julgar que me mantém sã, é isso que me impede de roubar, assassinar e maltratar alguém. Estou constantemente me julgando e acho que as regras que aplico a mim devem ser aplicadas a todas as pessoas.

Julgo sim pois não acho que meus sacrifícios devam ser subestimados, meu papel como profissional, é não deixar que esse julgamento interfira na minha atuação. Mas tenho todo o direito de achar muito injusto uma mulher sentindo dores de parto ficar ouvindo berros esquizofrênicos de uma outra que nem começou a dilatar. Sinto muito isso me indigna e não quero nunca que pare de me indignar.

Cheirar mal numa consulta, não é pobreza, ignorância ou falta de sabonete, é, como diria minha vó, falta de berço! Tire a pobreza dessas pessoas e o que sobra...

A mesma coisa.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Belíssima descrição... e tudo que tenho a dizer, do alto da minha santa ignorânia, é BOA SORTE! Porque a vida, infelizmente, não te dá muitas saídas. Nada sobra. Nem o berço.

25 November, 2005 11:01  
Blogger Fer said...

Foda isso Tati. Foda mesmo...
Eu entendo sua indgnação.
Num té certo. Nem direita, nem esquerda. O negócio é o muro. Ah muro...
haha
Ficar em cima dele é tão legal.

Mas realmente isso tudo é muito verdade. Não tem como discordar. NÃO TEM COMO!

Escrevi um textinho novo... hehe
FINALLY

29 November, 2005 17:16  

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